quarta-feira, fevereiro 07, 2007

CONTO I

Estava um tempo desgraçado lá fora. Não tinha mesmo graça nenhuma
ficar sentado em casa enquanto "aquilo" estava lá fora à vista de toda a
gente que passasse. Eram 3 da manhã e era difícil que passasse alguém, mas
alguma coisa tinha que ser feita, não se desse o caso... estava decidido,
tinha que o enterrar.
Não sabia como, mas tinha de o fazer. Vestiu o casaco do costume, enfiou os seus ténnis mais escuros e saiu para a rua mesmo que sem destino. Sabia que daquela noite não podia escapar. Tinha de fazer alguma coisa porque a única coisa que tinha feito até ali era ter ficado parado. Andou muitos metros sem que passasse vivalma, mas depois do café Nicola deu de caras com ele. Sentiu aquele frio na barriga, apressou o passo, mas o seu olhar obrigou-o a parar. E encarou-o.
Não o via há tanto tempo que custou a habituar-se à ideia de que aquela era a mesma pessoa que o tinha ajudado a ser o que era hoje. Recusou dentro de si essa ideia. Não era ele, não podia ser. Este parecia uns 20 anos mais velho do que a idade que ele devia ter a esta altura. Estaria por metade e, se era ele, o que estaria a fazer ali quando deveria estar no outro lado do Mundo?
Tentou andar, recuperar o seu caminho. Mas as pernas não respondiam. Não podia ser ele, era impossível. Estava estúpido com aquela ideia quando um uivo solitário lhe desviou o olhar. Quando o procurou novamente, já lá não estava. Que estupidez! Demasiado óbvio esta imagem. Saía à rua para o enterrar e sonhava que o via. A mente humana tem destas coisas, principamente quando ainda se tem na boca o sabor enebriante e aceso daquela erva maldita. Empastelei, disse a para si com um sorriso condescendente.
E seguiu caminho.
Para tropeçar no inevitável. Agora, tinha sido ele que o tinha encontrado. E, ali mesmo à frente, não haviam dúvidas. Nenhumas. Era ele! De carne e osso. Não era fruto da sua imaginação nem do desejo frutuíto de o encarar. Pegou nele pelo braço e levou-o dali. Sem dizer palavra, sem que alguém o pudesse testemunhar. Não, não o podia matar.Era cobarde demais para isso. E, mesmo que ele estivesse por metade, iria resistir concerteza. Nao queria passar por isso. Se a ideia dele era enterrá-lo, não era a matá-lo que o iria conseguir. Antes pelo contrário. A culpa faria com que ele vivesse para sempre na sua cabeça. Pior! Atormentá-lo-ia para o resto da sua vida. Não! Teria de o fazer desaparecer pelos seus próprios pés. Como? Não fazia a mínima.
Conforme caminhavam, lado a lado, como há tanto tempo não o faziam, lembrou-se daquelas manhãs em que ele o ia buscar para darem a volta do costume. Tantas vezes que nem olhavam um para o outro. O centro dos encontros eram o que lhe trazia, onde iriam comer ou os carros novos. Todos os dias tinha um carro novo. Era espectacular. Cada um mais espectacular do que o outro. E então? Hoje não se lembra particularmente de nenhuma coisa que lhe tenha trazido, nem de nenhum carro com que tenham voado. Lembra-se sim de nunca lhe ter falado de si, de nunca lhe ter dito o que gostava de ir fazer, de que nunca lhe disse se estava triste ou contente. Essas manhãs passavam, normalmente depressa demais, sem que na realidade soubessem um do outro. Tal como agora.
Que importância tinha isso agora?
O que queria mesmo era que ele o deixasse em paz, para que essa indiferença fosse para sempre e não houvesse expectativa de que um dia podia ser diferente. Se a distância resolvia? Não! Estava mais que provado que não. Se uma conversa resolvia? Não! Nunca conseguiram ouvir-se, não seria agora. O que fazer então?

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